De há um par de meses para cá tenho me dedicado ao estudo do grandioso realizador sueco Ingmar Bergman. É uma feliz coincidência que “Bergman” em alemão signifique “mineiro”, aquele que trabalha arduamente as entranhas da terra na busca de uma matéria preciosa. É uma imagética daquilo que Ingmar Bergman foi, um mineiro do espírito humano!
Visualizando obras fundamentais como “Persona”, “Luz de Inverno” ou a “Hora do Lobo”, e depois, já neste fim-de-semana, lendo a sua autobiografia “A lanterna Mágica” e vendo o filme de Bille August (com argumento de Ingmar) “As Melhores Intenções”, uma obra que retrata a história dos pais de Bergman (Henrik, um pobre estudante de teologia e depois pastor luterano, e Anna, uma jovem de família nobre e rica e, além disso, mimada), começo a compreender o mundo bergmaniano, os muros que não se derrubam, os recalcamentos ali onde a vontade não domina, a asfixia luterana, as patologias de uma educação autoritária, os ciúmes, os amores e os estranhamentos!
É um mundo terrível povoado de genialidade e desencantamento, como se Bergman fosse esse “dasein”, esse ser-aí, lançado no mundo, perdido, desamparado, sem possibilidade de regeneração mas que, num ímpeto de teimosia, ousou exorcizar todos os “mefistófeles” que povoam a psique humana.
Um realizador absolutamente obrigatório, um necessário auxílio na busca daquilo a que chamamos “europeus” e às suas múltiplas formas e contradições.
Na adaptação ao cinema da obra homónima de Georges Bernanos, sobressai a genialidade do realizador Robert Bresson e a sua capacidade estético-linguística de transmitir a dimensão solitária, abandonada da fé cristã (católica) no embate contra uma realidade crescentemente racionalista e positivista, onde a própria ideia de “morte de deus” ultrapassara os muros do academicismo e as fronteiras do intelectualismo. Este filme, de 1951 – ainda um ano maldito para a consciência histórica do mundo -, não pode apenas ser resumido a um qualquer panfleto reactivo ou um “panegírico” propagandista de um revivalismo dos êxtases divinos contra o cientificismo positivista, contra a ordem, a técnica, o mundo moderno enfim…, não! Esta obra é uma imagem que teima em se fazer ver – uma espécie de “momento dialético” que procura como tese iluminar e cegar a antítese vigente (como últimos lampejos diante da escuridão eterna).
Tal como “O laço branco” de Michael Haneke encarna o propósito de nos transmitir a origem educacional ou a génese espiritual da tragédia germânica da primeira metade do século XX, com o seu idealismo descarnado de sentimento, de humanidade (em toda a sua dimensão, como o erro, a incompletude, o pecado, etc) e que viria a impor uma alienação como condição existencial, algo absolutamente inimaginável, também esta obra antecedente lança um alerta, sinaliza um mundo oculto (perdido?) que ousava reafirmar-se continuamente num espaço inabitável, que deixara de ser vital…e que já não lhe pertencia! Talvez a obra – o livro e o filme – seja a objectivação do último sopro de um espírito que se foi, esvaído no éter da memória, deixando apenas um especto a pairar…e que pode ser representado pela arte e pelo mito!
E se lhe contassem que mais de um milhão de pessoas vivem num cemitério, acredita? Pode acreditar, pois essa verdade existe no Cairo, Egipto, onde tal massa humana – os pobres dos mais pobres – se misturam entre a vida e a morte, numa autêntica cidade surreal, que ultrapassa os sonhos mais fantasiosos da literatura universal.
Dormir ao lado de cadáveres, respirar o intenso pó sepulcral, escutar o silêncio aterrador da morte, comer com quem não come, pulsar com com não respira, amar com quem nadifica! Esta realidade aterradora chegou-nos ao cinema em 2011 pela mão de Sérgio Tréfaut, e mostra-nos, quiçá de forma ultra-realista, a verdadeira condição humana reflectida num espelho que não têm duas faces.
Olhamos para a pobreza e vemos a injustiça, olhamos para a religião e vemos a loucura, olhamos para a vida e vemos a morte, olhamos para a matéria e vemos a redução ao elemento mais básico, o pó, olhamos para tudo e nada vemos, a não ser a ideia de que o homem vive para a morte mais do que a morte impulsiona a vida. É como se existisse um constante chamamento para o nada, para esse descanso dos tormentos e das loucuras terrenas que desgraçadamente atormentam os espíritos mais inquietos.
Recomendo este documentário a todos aqueles que queiram reflectir sobre a condição humana no seu estado mais primário. Que queiram saber um pouco sobre a miséria, a vida, a morte, o Islão e a cotidianidade.
É um filme que nos fala e ao qual devemos escutar!